Da série: O que se escreve quando não se conversa durante os intervalos de aula...
Tenso só até certo ponto
XX
A noite
Um som.
Não adiantava preencher todo o ambiente que o continha. Sirene de algum carro de polícia ou choro de criança? Era um simples questionamento que surgia em sua mente frente a dor. Dilacerante. Ele a sentia rasgar pouco a pouco cada uma de suas veias, sentia desfazer o fiar de nervos de sua cabeça e não podia evitar. Latejava. O sangue pingava. Em sua frente o mundo parecia tão espaçoso, embora vago, embaçado mesmo em certo ponto liquido aquoso e continuava sem entender o porquê.
Recolocar a mente no lugar. Organizar. Lembrou por um instante de uma palestra motivacional de um fracassado qualquer, daquele tipo que incentiva os outros e não motiva a si mesmo. Por causa daquilo, fora obrigado no mesmo dia a organizar sua sala e arrumar as gavetas. Levantar a foto caída de Olívia. Como não havia reparado que a foto jazia caída e esquecida ali? Bem verdade, e ele mesmo assumiu, era que já não prestava muita atenção nela em si. Pouco menos no que ela dizia. Ainda menos no que ela fazia. E parecia nem se importar.
Tentou, então, lembrar os últimos passos daquele dia. Antes da noite. Início do dia. Havia sido mais um dia vazio no jornal onde trabalhava. Vazio de notícias. Vazio de pensamentos. Excessivamente cheio de comentários. Vazio de conteúdo. Vazio de vida em si. E se assumia parte disso. A desculpa? Andava tão cansado... e esqueceu-se que se existe o cansaço ainda existe vida. A voz de uma garota que ele nem mesmo conhecia o fez lembrar.
Saindo do trabalho, um gole de café ao lado do ponto de presença da empresa. Esperando. Só para ver Silvia sair. Não. Não ia dizer nada. Apenas escondeu o anel de noivado. Arrumou da forma que achou mais apropriado, enquanto passeava os olhos molhados de desejo pelo corpo da comandante do setor de classificados. De uma forma que a fizesse perceber. Percebeu, mas nem se importou. Ela sorria. Forte e bravamente, ela sorria. Cinco minutos antes, ela recebeu uma ligação que lhe despertou bem mais prazer e desejo em seu coração. Convite irrecusável.
Seguiu em frente com ar de orgulhoso e sentimento de trabalho cumprido. Mais por Silvia do que pelo trabalho em si, evidente. Quando chegou ao carro, recolocou o anel de noivado. Agora era o caminho casa-trabalho, trabalho-casa de sempre. Sem cinto de segurança. Não. Não foi um acidente. O carro ia lento como numa corrida de lesmas por boa parte do caminho. Velocidade mais e mais baixa. Nem 50 cavalos e tampouco 50 tartarugas. Engarrafamento de sempre. E surge ele para fazer ouvir sua voz. Tédio. Liga o som do carro. Tédio. Abre e fecha as janelas. Tédio. Xinga, briga e esbraveja com outros motoristas. Tédio. Conforma-se e aceita outras ultrapassagens. Tédio. Aquele sentimento de que o tempo em casa é menor que o tempo gasto no caminho. Em meio ao tédio, lembranças. O amor de Olívia. Alguma data que nem se lembra mais. Tédio. Pensamentos pecaminosos, unicamente no sentido do pecado original que lhe evoca a palavra, Silvia. Ainda sim, tédio.
Destino: casa. Ignoremos por hora a palavra para não antecipar o desfecho. Desfecho. Sente a palavra com um pingo de tragédia? Quem sabe pingos e respingos de sofrimento? Cubra-se e evite molhar-se de dor, pois, às vezes, de onde vem a lágrimas, enxergamos escorrer aquoso os gritos.
Lembrava inclusive dos pensamentos que lhe ocuparam ao chegar. Lembranças. Lembrava lembranças. E diga-me se há algo mais para recordar? Infância, alegrias, juventude, risos incontidos, choro no travesseiro abafado, um tombo no salão, maturidade, trabalho e decepção. Pensava também em amor e buscava encontrar em que momento o asco o substituiu. Quando seu coração deixou de bater mais forte? Acabou de vez a emoção? O ser de pedra enrijeceu até mesmo o coração, da maneira mais profunda e imunda que conseguiu imaginar. Quando esqueceu o primeiro amor e, se nunca esqueceu, em que instante Olívia morreu? As palavras agora começavam em problemas e terminavam em discussões.
O palco estava armado.
Hoje não haveria jogo de futebol. Não assistiria nada com os amigos, não iria ao estádio nem assistiria nada na televisão. Seguiu. Errou por duas ou três vezes as chaves. Não lembrou ao certo, mesmo lembrando do detalhe. Entrou pela porta principal e enroscou-se em uma cortina que ficava, agora, atrás da porta. Soltou:- que idéia... E que lugar para colocar uma cortina. Foi até a cozinha, geladeira cheia, nada no fogão, pelo que merecia, não havia ali nenhuma novidade. Passando pela sala TV e luzes desligadas. Não se deu ao trabalho de ligá-las. Olívia deve estar na cama. Oito da noite. Olhou no relógio, cedo também para dormir. Dirigiu-se ao banheiro, antes do quarto, e estava coberto de plásticos por todos os lados.
-Obras? Hum... Talvez... Quem sabe... Eu não moveria um dedo para fazer... Provavelmente... Pagar na imensa maioria das vezes sai mais barato e às vezes as pessoas não entendem...
Nesse instante, ouviu um sorriso. Um sorriso vindo da sala. O detalhe era: Pode-se ouvir um sorriso? O certo e exato foi que sentiu algo diferente e ao mesmo tempo verdadeiro. Sabia, e muito bem, que há tempos não sentia. Da porta do banheiro, reparou no corte dos plásticos sobre a porta. Perfeito.
Uma formiga. Passeava sem pretensões no local. Ergueu-se na ponta dos pés, com o polegar esmagando levemente, quase pedindo desculpas. Do sorriso de onde ouviu na sala, viu dentes alvos e uma pancada no rosto. Cambaleava. tonto. Quando viu os dentes alvos de Silvia a sorrir, daquele modo incontido. Levava um celular preso a uma espécie de cinto que utilizava sobre a saia. Curta e provocante como ele sempre gostara. Agora não parecia um atrativo que lhe despertasse tanta atenção. E mesmo assim, percebeu. Tipicamente como ele. Cada pensamento. O martelo pintado de vermelho sangue na ponta. Sentia o pescoço molhado. Silvia ainda sorria. Contudo por trás dela, como se de um sonho, saí agora Olívia, com um olhar ainda mais devastador e um sorriso extremamente reluzente. Ela trazia luz à escuridão dos fatos. A ponta de esperança que ele necessitava para lutar, a não ser que...
Desmaiou.
Salvação? Conheci tolos e sábios que tentavam em vão traduzir essa palavra. O mais próximo da verdade foi um sabiá com cantos curtos, agudos e precisos. Ninguém ao menos lhe deu crédito por sua imensa percepção. Talvez nem quem percebesse, lhe desse o devido. Agora, pensava, acreditava, enganava-se com imensa certeza, mentia com convicção, que sabia exatamente o que estava ocorrendo. Ainda não enxergava, mas pensava quase claramente. Teria Olívia enfrentado Silvia? Sua heroína o livrara da morte por admirar em excesso quem não deveria? O certo era que sentia a pele em um meio termo entre quente e fria.
O palco estava pronto.
Os olhos abriam-se pouco a pouco. Olívia surgia sorridente... Olívia surgia sorridente! Sílvia gargalhava sem nenhum controle do outro lado. Sentia-se agora um animal acuado e procurava entender. Olívia beijava Silvia de forma tão apaixonada que há tempos ele não via, não sentia. Nem lembrava.
O corpo todo amarrado por mais e mais plásticos. A cabeça imobilizada e mesmo assim percebia ainda estar no banheiro. Pensava em gritar, por segundos em chorar, mas quis mostrar-se forte. Em vão.
Silvia gritava “Este é o preço!” sem fazer muito sentido. Para ela, aquilo fazia todo o sentido do mundo. O sentido da vida era aquele momento.
Olívia agora o beijava e dizia com o fervor dos tempos de menina:
-Vim amenizar-te o sofrimento, meu amor, tudo isso por que ainda te amo e mesmo que não me arrependa por isso, vou sempre e sempre te amar...
Ela não dizia seu nome. Nem por um momento. Ele era seu amor. E ela ria descontroladamente.
Ninguém de fora podia ouvir as duas fúrias sedentas, o alvo fruto de uma vida, com todo o primor e cuidado dilacerar.
A noite seguia com todo o sofrimento escondido, esperando por contar mais e mais histórias de dor e de amor. Um segundo de atenção e, talvez, alguns mesmo de países distantes puderam ouvir.
Concentre-se. Foque seu espírito na dor e na ilusão. Amor, desespero e paixão. Leia por sobre as linhas do sadismo e perversão. E ouvirá o grito que espera o mínimo de compaixão. Não sua, talvez, nem se importe. Eu mesmo não meu importei. Mesmo assim...
Eu ouvi.
Alexandre Bernardo
XX
Ouviu?
Sempre e sempre aqui
A cigana de fogo (Ato 1)
-
1813
Europa ocidental
Voltava pra casa após mais um dia de trabalho nada incomum
Distante eu vi uma fogueira
Um povo estranho em volta dela dançando e can...
Há 4 anos
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