Sigamos!
XX
O Sonho
Acordei hoje mais tarde. Não precisava trabalhar. Pensando em mil maneiras de aproveitar o ócio um só pensamento permanecia firme. Sua força era tamanha que quase me obrigava instantaneamente a atendê-lo.
Volte a dormir. Volte a dormir. Volte a dormir. Com misto de força e pesar levantei, pois não conseguiria ler. Mesmo se tentasse muito. Aconteceu que no longo e árduo caminho até o quarto a campainha tocou.
Por um segundo pensei em organizar o mais rápido possível o apartamento. Esconder as tralhas e guardar as garrafas da noite anterior. Tinha estado com alguns amigos. E amigas. Para que o fim de noite não fosse somente solidão. Chutei para o lado algumas garrafas e o som relembrou uma dor de cabeça extremamente chata e o fato do whisky sempre me fazer esquecer as besteiras da noite anterior.
A campainha tocou novamente.
O som cheirava a problemas.
Por descuido, imbecilidade, falta de raciocínio lógico ou simplesmente a mais pura coragem, estúpido que sou, abri a porta.
Roberto me recebeu com o sorriso mais feliz dos últimos... sei lá... 7 anos. Cumprimentei com um olá, meio amarelo e bem cuidadoso para não transparecer o bafo alcoólico. Ele me abraçou e disse radiante:
- Eu tive um sonho!
Sua voz condizia com seu estado emocional de delito flagrante ou algo assim. Roberto era meio baixinho, pelo menos mais baixo que eu, e sempre fora um magricela que tinha a voz sempre elogiada, desde que nós éramos crianças. O certo era que algo devia ter acontecido para usar aquele tom de voz.
- Thiago, você pode até nem acreditar, mas cara... Eu tive o melhor sonho da minha vida!
O tom de sua voz começava a aumentar e isso sinceramente me assustava um pouco.
- Pois bem – disse eu – entre... acomode-se e me diga com detalhes a importância exata desse sonho.
Sentado e com um sorriso fixo, mas ainda meio “freaking out” ele sentou curingamente dizendo:
- É um sinal!
Nesse estado eu já estava completamente descrente e não esperava que essa conversa fizesse mais sentido que um papo movido a ácido em uma discoteca ao sul de Palm Beach.
- Errr... Continua Roberto... Você não apareceu no trabalho ontem e nem ligou... Por que mesmo? – perguntei.
- Cara – começou ele – ontem decidi tirar um tempo pra mim. Dei uma geral na casa, organizei meus documentos e fiquei revendo minhas lembranças da Ana...
Interrompi antes que a conversa tomasse esse rumo e fui relembrá-lo que a ex-namorada de Roberto (única e eterna ex, já que ele apresenta certa “incapacidade” de conseguir uma namorada nova) e de como era inútil tentar reatar qualquer tipo de relacionamento.
Ele ignorou.
- T, me escuta, eu passei a tarde toda, cara, só olhando aquela foto. Aquela dela encostada no portão da casa da Stella. Aquele cabelo curto preto, o vestido também preto e fumando Malboro, lembra? Poxa... Aquele olhar dela me chamando...
- “T” o caramba – disse ainda calmo – e veja bem meu brother, não vou te repetir que isso é perda de tempo, mas se você não acha que é tempo perdido, vai lá... Acorda que o sonho já terminou e vai viver tua vida!
Levantei irritado e fui buscar meu remédio...
Doutor mundialmente conhecido como Jack Daniels estava no final, mas ainda rendia 5 ou 6 doses para alegrar a manhã (já quase tarde).
- Ok – eu disse já com dois copos nas mãos – nada de gelo, deixe de ser mocinha e me conte a porcaria do sonho depois do cowboy.
- Hum... Tá bem... Foi assim... Meio estranho sabe. Eu estava em algum lugar que não consigo saber muito bem onde era, mas sabia que conhecia o lugar. Ana chegava sozinha. Parecia estar com frio, por causa da roupa que estava usando. Era tipo... Um casaco de pele sabe? Eu sei que ela não gosta por causa dos bichinhos e tal... Mas era o que ela estava usando... – Ele respirou melhor por um instante e vi nesse momento a desculpa perfeita para interromper.
- Ok. Você vai me dizer que esse é o sinal cara? Você parece estar pior do que em todas as outras vezes – Respirei com reprovação e perguntei ainda – Era só isso? Ela mudou completamente seu modo de pensar por comprar um casaco?
Ele mudou levemente de posição e tomou uma pequena dose do whisky.
- Não “T”. Não é só por isso. Ela veio pra mim em sonho. Eu senti a sinceridade que sai de cada uma das palavras que ela dizia. Foi o “sonho”, se é que posso chamar de sonho sabe? Foi o sonho mais real que já tive em toda minha vida... Foi diferente... Diferente de tudo que já vivi em todas as noites depois dela...
Minha cabeça ardia e ficava cada vez mais difícil acompanhar do que se tratava o assunto e mesmo assim e insistia em ceder tempo para as loucuras de Roberto.
O que ela disse “R”? – Disse com um sarcasmo na voz pra ver se ele parava com a idiotice de me chamar de “T” que eu odiava.
- Ela disse que me amava cara. – Sorriu com uma felicidade de assustar.
- Você pirou mesmo Betinho? Você é retardado? É? Você vai acreditar numa declaração de uma guria em um sonho seu? Porra! É isso? – Perdi claramente a paciência, mas não vi outra saída no momento.
- “T”, não foi só isso. Ela me disse que se arrependia de ter me deixado. Que sofria muito com aquilo, mas não podia engolir o orgulho pra me procurar... Pra me pedir pra voltar... – Outra dose pequena no whisky – Ela disse que quer ser feliz do meu lado cara... Você consegue entender isso? É um sinal! Eu só preciso procurar por ela! Explicar pra ela como eu me sinto depois que ela... – Engoliu as palavras que seriam pronunciadas em seguida.
- Te deixou. – Disse seco e amargo.
- Não foi bem assim “T”. Foi algo mútuo – disse envergonhado.
Aproveitei pra soltar tudo o que queria dizer e temia por seus momentos de tristeza.
- Mútuo é o caralho! Você foi abandonado seu otário! Não adianta como você tente fantasiar essa merda! Foi isso que aconteceu e até agora você não foi homem. Homem. Levanta e encara a porra da situação! – Talvez tenha me excedido nos palavrões, mas me senti muito bem por cada um dos distribuídos. E por um momento percebi como aquilo iria terminar.
- Você não tem o direito de falar assim... – ainda não reagia.
- Por que eu não estava lá... Não é mesmo? Como se eu não soubesse quem é você e principalmente quem é a Ana... – isso surtiria o efeito que eu queria agora...
Ele se levantou e colocou o copo na mesa com calma. Ele estava contando. Eu sabia que ele era esse tipo de cara e então provoquei.
- Você sabe não é? – Nem tinha nada pra saber, mas o efeito dessas perguntas é sempre devastador na área da curiosidade. Destrói amizades, mas eu tentaria de novo.
Ele tentou me acertar com um soco direto na cara. Era uma dança. Óbvia o suficiente pra eu conseguir fugir sem dificuldades. Quando ele passou direto pelo impulso exagerado que tomou, eu o empurrei na direção do corredor. Tinha algumas roupas jogadas, mas nada muito protetor para aliviar sua queda. Bateu com as costas no chão e xingou algo antes de levantar. Ele nunca foi bom com brigas.
- O que você quer? O que você está tentando provar? Fala Roberto! – perguntei já gritando e pensando na possibilidade de algum vizinho aparecer. Já bastava a bagunça na noite anterior.
- Quero provar que estou certo! Eu estou certo! As coisas mudam e você precisa perceber isso! – Ele terminou a última frase antes de partir para tentar me acertar.
O impulso o trazia para a sala. Coisas demais para quebrar. A briga teria efeitos menos devastadores se continuasse no corredor e no máximo arranhasse as paredes. E nossos cotovelos e joelhos possivelmente. Avancei com o ombro então. Acertei seu maxilar e o murro acertou meu estômago. Nada preocupante. Não foi com força o suficiente. Ele caiu mais perto da porta do banheiro. Existiam mais duas atrás. Dois quartos e ambos fechados. Festa na noite anterior, quartos obviamente fechados na manhã seguinte. Olhei pra porta e o whisky me lembrou de uma pegação na noite anterior. Isso poderia me desconcentrar e evitei, enquanto andava na direção de Roberto com os olhos cheios de raiva e preocupação. Não queria machucá-lo, por mais que ele quisesse isso.
- Você ainda vai conversar? Ou como vai ser? – falei mais baixo agora.
Ele levantou e estendeu os braços como se pedisse um abraço.
Sorri e caminhei em sua direção. Ele me segurou firme e disse no meu ouvido baixinho:
- Desculpa – Eu senti sinceridade na palavra.
Eu já me preparava para dizer que estava tudo bem, quando ele me jogou na porta fechada do quarto. O barulho foi imenso e a porta abriu. Ele veio atrás de mim. Bati a cabeça na porta e pelo impacto ou pelo whisky não consegui me recuperar rápido o suficiente pra levantar. Quando o vi, ele já segurava a gola da minha camisa e se preparava para um soco. Eu iria agüentar. Talvez fosse trabalhar com um olho roxo, o que não seria de modo nenhum novidade. Ele olhou em direção a cama e parou. Senti curiosidade e virei o pescoço. Só vi um cabelo loiro, muito liso, entre minhas cobertas. Esqueci da briga por um instante e pensei na loira e em como noite anterior foi potencialmente boa, já que lembrava somente de alguns flashes. Sorri.
- Sabe... Eu sei por que você é infeliz – Roberto disse seriamente – É por que você nunca vai conhecer ninguém como a Ana... Alguém pra te deixar sentindo o... – Ele engolia até os pensamentos nesse momento.
Olhei para a cama e mais uma vez para Roberto. Lágrimas nos olhos. Fechei o olho com força e olhei novamente para os lençóis.
Ana.
Cabelo descolorido. Tampando o resto do corpo com os lençóis e claramente envergonhada. Ela não sorria, nem chorava e nem parecia pretender dizer uma palavra.
O soco que levei na boca foi o mais forte em muito tempo. Sangue saiu de minha boca e enfeitou o guarda-roupa ao lado. Eu achei justo. Roberto xingava muito e eu permanecia tonto. Eu era o alvo. O culpado. E nem se lembrava da Ana.
Ela começou a tentar me defender e Roberto a ignorava. Ela começou a vestir suas roupas e se preparar para deixar meu apartamento. Roberto que não queria me deixar e já começa a me bater sem tanta força. Chorava muito mais firmemente. E eu não pretendia reagir.
Quando ele parou, sentou-se na cama e permaneceu parado. Ana sentou-se ao lado e disse algumas palavras para ele. Eu não conseguia ouvir e nem me esforçava. Ela pegou sua bolsa em uma das mãos e seu salto em outra. E saiu com o mesmo andar superior que me motivou a investir nela na noite anterior. Erro do whisky. Da vida e do whisky, mas eu podia ter evitado. Sei que podia. Sangrava ainda e percebi que meu supercílio estava cortado. Segurei para conter parcialmente o sangue. Ia precisar de um ou dois pontos. Que droga...
Levantei.
- Roberto... Não adianta fantasiar sua vida com sonhos... As coisas não mudam... Nunca mudarão...
Sai do apartamento, peguei um táxi até uma unidade de pronto-atendimento e ao voltar não vi mais Roberto por lá. Não o vi por alguns dos anos que se seguiram. Alguns dizem que ele aprendeu. Outros dizem que ainda quebrou a cara por outros lugares do globo. Certo foi que se demitiu do trabalho e na cidade ninguém mais ouvia falar dele. Eu sempre o imaginei feliz com outra Ana. Uma que gostasse dele e o fizesse feliz. Estilo príncipe e princesa dos contos infantis.
Se pudesse trocar uma ou duas palavras, talvez dissesse:
- Vai... E mesmo sozinho seja feliz...
Alexandre Bernardo
XX
Another fake tale...
Just
Another...